(publicada en la revista Carta Maior, http://www.cartamaior.com.br)
Argentina 2001: Memórias de uma cidade em chamas
Há mais de dez anos, nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, a institucionalidade argentina voou em mil pedaços e a cidadania, farta das misérias da política e seus negócios, se transformou em resistência popular ao grito de “Que se vayam todos”, ao som ensurdecedor das panelas e das barricadas de fogo nas esquinas. Uma avalanche que colocou frente a frente povo e instituições, e que deixou 39 mortos, milhares de feridos, saques e pobreza, mas que apesar disso entreabriu uma porta para uma nova etapa na política e na economia argentina. O artigo é de Francisco Luque.
Francisco Luque - Buenos Aires
Muitos têm uma história para contar, ou melhor, há muitos relatos que querem ser contados. Escutam-se por todo lado. Nas ruas, comércios, transportes públicos, escritórios ou à espera das crianças nas escolas. Nestes últimos dias tudo gira em torno aos acontecimentos de 19 e 20 de dezembro de 10 anos atrás, de 2001, quando a institucionalidade argentina voou em mil pedaços e a cidadania, farta das misérias da política e seus negócios, se transformou em resistência popular ao grito de “Que se vayam todos”, ao som ensurdecedor das panelas e as barricadas de fogo em todas as esquinas.
Uma avalanche que colocou frente a frente povo e polícia, instituições, e que deixou 39 mortos, milhares de feridos, saques e pobreza, mas que apesar disso entreabriu uma porta para uma nova etapa na política e na economia argentina.
A crise econômica que derrubou o país no final dos anos 90 teve seu ápice naqueles dias de fins de 2001. Após décadas de medidas neoliberais, indicadas pelo Consenso de Washington, e do saque a indústria estatal por parte de multinacionais com apoio das autoridades políticas, sobreveio o descalabro econômico. Fuga de capitais, quebra de bancos, resgates estatais dos capitalistas e confisco de poupanças, somados a uma recessão que se incrementava principalmente pela desvalorização do Real em 1999 e um aumento da pobreza que se sentia em grande parte da população foi o estopim para o protesto.
Carente de lideranças e de idéias, o então governo de Fernando de la Rúa não tinha em seu programa receitas para enfrentar a crise econômica, fazendo que as soluções viessem de mãos dadas com medidas de ajuste aos trabalhadores, que não deram resultado. Antes havia acontecido a redução de salários do funcionalismo, a aprovação da lei de flexibilização trabalhista e planos cambiais inaplicáveis, circunstâncias que se desenvolviam rodeadas de um desemprego gigantesco que só fazia crescer.
É neste momento que De la Rúa convoca o neoliberal Domingo Cavallo, ex-ministro de Carlos Menem, para ocupar o cargo de ministro da Economia. Cavallo aplicou restrições à retiradas bancárias, medida popularmente conhecida como “El corralito”, o que provocou o descontentamento geral. Nos dias que antecedem o natal de 2001 começaram a produzir-se os primeiros saques a supermercados e comércio.
As imagens dos saques na televisão comoveram todo o país. O que foi o
“celeiro do mundo”, o país das vacas e da “manteca al techo”, se encontrava com sua imagem real. Ante a magnitude dos fatos, no dia 19 de dezembro de 2001, ao cair da tarde, o presidente De la Rúa declarou o Estado de Sítio, passando o controle da situação aos aparelhos repressivos. O plano não teve êxito e nessa noite iniciaria a insurreição.
Nesse clima social nasceu a revolta popular que produziu uma transformação histórica no país. Durou 24 horas, de 19 a 20, e culminou com a renúncia do governo de Fernando De la Rúa. Segundo testemunhas e estimativas, desde o entardecer do dia 19, depois do anúncio do Estado de Sítio por parte do governo, cerca de 200 mil pessoas se mobilizaram dos bairros para concentrar-se no entorno da Casa Rosada e do Congresso Nacional. A classe média argentina, trabalhadores que viam sumir suas economias de toda uma vida, indenizações de uma década infame presas nas caixas fortes dos bancos, deram ao processo um caráter dinâmico e profundo.
Mas a mobilização foi maior. Em cada bairro da capital, na residência do Presidente ou casa de autoridades, a população acendeu fogueiras e fizeram soar as panelas. No total, umas 800 mil pessoas teriam se mobilizado. 2001 foi uma rajada de ar fresco para a voz do povo.
O cientista político Atilio Borón sustenta em uma entrevista à revista Sudestada que as jornadas dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 puseram fim a um modelo neoliberal raivoso e deram lugar a um muito mais limpo e melhor ordenado. Embora os governos posteriores não tenham produzido um processo de alteração das estruturas fundamentais do modelo neoliberal, algumas mudanças importantes foram realizadas como, por exemplo, a quitação dos bônus da dívida externa.
Segundo o livro “2001: Relatos de la crisis que cambió a Argentina”, são diversos os elementos que se podem resgatar das jornadas de dezembro de 2001. Em primeiro lugar a recuperação da política depois dos anos de apatia do menemismo. A ampla convocatória e a participação de toda a cidadania dão conta de um fato particular na história sociopolítica da Argentina. Por outra parte, o resgate do espaço público delimitado desde a última ditadura se transformou em um cenário propício para o debate político e a resolução de conflitos. O ator popular como protagonista, a importância do conflito e o diálogo como recurso indispensável para a solução deles são outros dois fatores que se resgatam deste momento histórico. Sem os acontecimentos de 2001, hoje a política seria diferente na Argentina.
Outro aspecto interessante para explicar a “pueblada” é o contexto internacional. Para Borón, este fenômeno tem relação com uma série de mudanças que foram se produzindo na América Latina, leia-se a ascensão de governos populares. Por outro lado, já haviam passado e estavam frescos na memória os grandes incidentes de Seattle, na assembléia conjunta do Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial e tinha acontecido a primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Ou seja, havia um clima de crescimento da luta de massas na América Latina que se refletiu na Argentina e que a torpeza de De la Rúa, ao implementar medidas repressivas, não soube ler. Isso somado ao grau muito forte de insatisfação popular provocou a crise.
Mas dezembro de 2001 deixou também 39 mortos, entre eles nove menores de 18 anos. Cada um com histórias particulares. E ainda se procuram os responsáveis. Neste sentido, o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), dirigido pelo jornalista Horacio Verbitsky, exigiu à justiça que o ex-presidente Fernando De la Rúa seja julgado por sua suposta responsabilidade nos crimes ocorridos nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001. O processo gerado pelos fatos ocorridos no centro da Cidade de Buenos Aires se dividiu em duas frentes: uma, contra os autores materiais dos homicídios e as lesões; e a outra - que já está a ponto de ser levada a júri - pela responsabilidade dos altos chefes do Governo Nacional e da Polícia Federal que estiveram à frente da repressão. Ainda que Fernando De la Rúa tenha sido retirado da causa por "homicídio culposo" pelo juiz Claudio Bonadío e depois pela Câmara Federal, o CELS reivindicou que a Sala I da Câmara Nacional de Cassação Penal reverta essa decisão e permita que o radical seja julgado com outros funcionários e policiais.
Enquanto isso, as ruas continuam contando suas histórias. A Associação de Repórteres Gráficos da República Argentina (AGRA) está realizando uma intervenção urbana com fotografias de grandes dimensões, expostas nos mesmos lugares onde sucederam os feitos históricos de 10 anos atrás. Além disso, organizações sociais de esquerda e cidadãos comuns realizaram marchas e atividades culturais em homenagem às vítimas. Para todas, as que morreram naqueles dias e as que ainda perduram.
Tradução: Libório Junior
Uma avalanche que colocou frente a frente povo e polícia, instituições, e que deixou 39 mortos, milhares de feridos, saques e pobreza, mas que apesar disso entreabriu uma porta para uma nova etapa na política e na economia argentina.
A crise econômica que derrubou o país no final dos anos 90 teve seu ápice naqueles dias de fins de 2001. Após décadas de medidas neoliberais, indicadas pelo Consenso de Washington, e do saque a indústria estatal por parte de multinacionais com apoio das autoridades políticas, sobreveio o descalabro econômico. Fuga de capitais, quebra de bancos, resgates estatais dos capitalistas e confisco de poupanças, somados a uma recessão que se incrementava principalmente pela desvalorização do Real em 1999 e um aumento da pobreza que se sentia em grande parte da população foi o estopim para o protesto.
Carente de lideranças e de idéias, o então governo de Fernando de la Rúa não tinha em seu programa receitas para enfrentar a crise econômica, fazendo que as soluções viessem de mãos dadas com medidas de ajuste aos trabalhadores, que não deram resultado. Antes havia acontecido a redução de salários do funcionalismo, a aprovação da lei de flexibilização trabalhista e planos cambiais inaplicáveis, circunstâncias que se desenvolviam rodeadas de um desemprego gigantesco que só fazia crescer.
É neste momento que De la Rúa convoca o neoliberal Domingo Cavallo, ex-ministro de Carlos Menem, para ocupar o cargo de ministro da Economia. Cavallo aplicou restrições à retiradas bancárias, medida popularmente conhecida como “El corralito”, o que provocou o descontentamento geral. Nos dias que antecedem o natal de 2001 começaram a produzir-se os primeiros saques a supermercados e comércio.
As imagens dos saques na televisão comoveram todo o país. O que foi o
“celeiro do mundo”, o país das vacas e da “manteca al techo”, se encontrava com sua imagem real. Ante a magnitude dos fatos, no dia 19 de dezembro de 2001, ao cair da tarde, o presidente De la Rúa declarou o Estado de Sítio, passando o controle da situação aos aparelhos repressivos. O plano não teve êxito e nessa noite iniciaria a insurreição.
Nesse clima social nasceu a revolta popular que produziu uma transformação histórica no país. Durou 24 horas, de 19 a 20, e culminou com a renúncia do governo de Fernando De la Rúa. Segundo testemunhas e estimativas, desde o entardecer do dia 19, depois do anúncio do Estado de Sítio por parte do governo, cerca de 200 mil pessoas se mobilizaram dos bairros para concentrar-se no entorno da Casa Rosada e do Congresso Nacional. A classe média argentina, trabalhadores que viam sumir suas economias de toda uma vida, indenizações de uma década infame presas nas caixas fortes dos bancos, deram ao processo um caráter dinâmico e profundo.
Mas a mobilização foi maior. Em cada bairro da capital, na residência do Presidente ou casa de autoridades, a população acendeu fogueiras e fizeram soar as panelas. No total, umas 800 mil pessoas teriam se mobilizado. 2001 foi uma rajada de ar fresco para a voz do povo.
O cientista político Atilio Borón sustenta em uma entrevista à revista Sudestada que as jornadas dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 puseram fim a um modelo neoliberal raivoso e deram lugar a um muito mais limpo e melhor ordenado. Embora os governos posteriores não tenham produzido um processo de alteração das estruturas fundamentais do modelo neoliberal, algumas mudanças importantes foram realizadas como, por exemplo, a quitação dos bônus da dívida externa.
Segundo o livro “2001: Relatos de la crisis que cambió a Argentina”, são diversos os elementos que se podem resgatar das jornadas de dezembro de 2001. Em primeiro lugar a recuperação da política depois dos anos de apatia do menemismo. A ampla convocatória e a participação de toda a cidadania dão conta de um fato particular na história sociopolítica da Argentina. Por outra parte, o resgate do espaço público delimitado desde a última ditadura se transformou em um cenário propício para o debate político e a resolução de conflitos. O ator popular como protagonista, a importância do conflito e o diálogo como recurso indispensável para a solução deles são outros dois fatores que se resgatam deste momento histórico. Sem os acontecimentos de 2001, hoje a política seria diferente na Argentina.
Outro aspecto interessante para explicar a “pueblada” é o contexto internacional. Para Borón, este fenômeno tem relação com uma série de mudanças que foram se produzindo na América Latina, leia-se a ascensão de governos populares. Por outro lado, já haviam passado e estavam frescos na memória os grandes incidentes de Seattle, na assembléia conjunta do Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial e tinha acontecido a primeira edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Ou seja, havia um clima de crescimento da luta de massas na América Latina que se refletiu na Argentina e que a torpeza de De la Rúa, ao implementar medidas repressivas, não soube ler. Isso somado ao grau muito forte de insatisfação popular provocou a crise.
Mas dezembro de 2001 deixou também 39 mortos, entre eles nove menores de 18 anos. Cada um com histórias particulares. E ainda se procuram os responsáveis. Neste sentido, o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), dirigido pelo jornalista Horacio Verbitsky, exigiu à justiça que o ex-presidente Fernando De la Rúa seja julgado por sua suposta responsabilidade nos crimes ocorridos nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001. O processo gerado pelos fatos ocorridos no centro da Cidade de Buenos Aires se dividiu em duas frentes: uma, contra os autores materiais dos homicídios e as lesões; e a outra - que já está a ponto de ser levada a júri - pela responsabilidade dos altos chefes do Governo Nacional e da Polícia Federal que estiveram à frente da repressão. Ainda que Fernando De la Rúa tenha sido retirado da causa por "homicídio culposo" pelo juiz Claudio Bonadío e depois pela Câmara Federal, o CELS reivindicou que a Sala I da Câmara Nacional de Cassação Penal reverta essa decisão e permita que o radical seja julgado com outros funcionários e policiais.
Enquanto isso, as ruas continuam contando suas histórias. A Associação de Repórteres Gráficos da República Argentina (AGRA) está realizando uma intervenção urbana com fotografias de grandes dimensões, expostas nos mesmos lugares onde sucederam os feitos históricos de 10 anos atrás. Além disso, organizações sociais de esquerda e cidadãos comuns realizaram marchas e atividades culturais em homenagem às vítimas. Para todas, as que morreram naqueles dias e as que ainda perduram.
Tradução: Libório Junior
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